09 November 2006

and yet...

Bom, eu disse que nem queria falar disto mas de vez em quando embato em textos que merecem ser partilhados. Este deu um trabalhão à Sara (outra, que ainda não falo de mim na terceira pessoa) a passar do papel para o computador mas sim, Sara, valeu a pena, obrigada. E depois de ter lido um dos comentários no post anterior achei que devia fazer o copy/paste.

Confesso que já me apetecia pouco falar do tema do aborto, depois de todos os argumentos terem sido já tão amplamente discutidos e a obstinação condenatória persistir. Mas depois de algumas vozes inesperadas terem vindo a público afirmar coisas espantosas, algumas delas neste mesmo jornal, talvez faça sentido reafirmar algumas verdades óbvias, ainda que incómodas.

1. O aborto existe, sempre existiu e não vai deixar de existir. Seja por ignorância, imprudência, erro de julgamento ou simples azar, as mulheres ficam grávidas sem querer. E por vezes sentem que efectivamente não querem ou não podem seguir em frente com aquela gravidez. Claro que todos queremos diminuir essas situações - e devemos fazer esforços sérios, não moralistas e não paternalistas nesse sentido. Mas o problema nunca será totalmente resolvido a montante. As questões que importa, por isso, colocar são: onde e em que condições é que esse aborto vai ser feito? Deve uma mulher pagar com risco de morte ou dano severo para a saúde essa decisão? Que legitimidade existe no enriquecimento feito com base no aborto clandestino?

2. E, já agora, deve a mulher pagar essa decisão com a prisão? Porque, como ficou amplamente demonstrado, efectivamente há condenações por causa do aborto. E que me desculpem os defensores de soluções intermédias: ou é crime e é penalizado ou não é penalizado e não é crime de todo. Porque, que sentido faz perpetuar uma lei que não é para cumprir? Que traduz esse incumprimento senão o seu radical alheamento da realidade e vontade social?

3. E agora que me desculpem alguns sectores feministas: não, o aborto não é uma questão de mulheres. Ou antes, é-o, mas não deveria ser, pelo menos não deveria ser equacionado como uma questão apenas de mulheres. E neste erro tanto os defensores do "sim" como do "não" têm caído. Claro que há questões de género no aborto, desde a desigual repartição dos cuidados com os filhos, aos desequilíbrios salariais. E, claro, o simples facto de ser no corpo da mulher que a decisão de ter ou não filhos assume uma violência "incarnada". Mas, a não ser que estejamos perante novos mistérios transcendentais, cada embrião tem dois seres humanos na sua génese. Onde estão os homens, no equacionar público desta questão? E, já agora, onde estão os homens condenados pela decisão de abortar (ou será - coisa conveniente - que todas as mulheres condenadas por aborto em Portugal decidiram sozinhas, sem participação ou conhecimento dos respectivos parceiros?).

4. Finalmente, o que sinto como uma última verdade, para mim própria inconveniente: por muito que os defensores do "sim" a evitem - e eu, como defensora do "sim", compreendo a estratégia -, a questão da vida humana é de facto relevante. Porque, se entendermos o embrião como igual a uma pessoa - se acreditarmos mesmo nisso -, então o aborto apenas se justificaria em situações de risco de vida da mãe. Porque apenas aí estaríamos a falar de valores de igual ordem moral. Mas será que acreditamos mesmo que um embrião é uma pessoa? Reagimos da mesma forma ao aborto espontâneo às 10 ou 12 ou até mais semanas como reagiríamos à morte de um recém-nascido? Sofremos da mesma forma? Ritualizamos da mesma forma a sua perda? Alguém pode, em consciência, dizer que sim?

Artigo de opinião assinado por Carla Machado, professora universitária, no Público da última quinta-feira.

5 comments:

  1. Anonymous9:53 PM

    Não posso deixar de considerar que este texto está repleto de razões válidas e coerentes. Merece ser partilhado, sim senhor.

    Só em relação ao ponto 4:
    Penso que a diferença de reacções está fortemente relaccionada com o que se vai sentindo e projectando no no embrião à medida que cresce dentro da mãe. E ambos, sentimentos e expectativas, vão aumentando com o avançar da gravidez, em todos quanto a seguem, especialmente na mãe.
    Daí que o sentimento de perda seja maior aos 5 meses do que aos 2, e ainda maior aos 9 do que aos 5...
    Mas quando o bébé nasce, quando vemos com os próprios olhos a materialização de toda essa expectativa, o sentimento de perda é incrivelmente maior, e depois vai sempre aumentando.

    Conclusão:
    Se não reagimos da mesma forma, não é por acreditarmos mais ou menos na vida do embrião, mas sim porque o apego vai sendo maior com o avançar do tempo.
    Somos humanos, e pouco ou nada podemos fazer em relação a isso.

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  2. clap clap clap clap.
    fantástico, este artigo. a minha opinião em palavras que fazem sentido de uma ponta à outra. finalmente.
    estou farta de tentar explicar-me e dar com encruzilhadas de facciosismos e enredar argumentos que tão depressa descambam da despenalização do aborto para o aborto em si.
    obrigada :)

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  3. Para quem gostou do texto ouso propor uma canção, vejam lá o tema...

    http://www.youtube.com/watch?v=CkYkuZaq6Jw&eurl

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  4. Anonymous1:48 PM

    Acho que sim. Devemos ser todos os contribuintes a pagar todos os abortos que todas as mulhers(e homens, naturalmente) queiram fazer... o que é óptimo com tanta gente em listas de espera para fazer operações vitais. E afinal sao só embriões e embriões não são pessoas, pois não? siga! e viva a pós-anti-contracepção! Por muito que compreenda o drama social, acho que o Sim é o refelxo do nosso estilo e conceito de vida! aceito muitos casos como necessários mas acho que isto é banalizar aquilo que nos faz estar aqui a viver a vida.

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  5. Caro anónimo, por essa ordem de ideias também não devíamos pagar tratamentos a cancros de fumadores, a drogados, a doentes cardio-vasculares que comeram demasiadas salsichas, que se despitaram porque passaram sinais vermelhos e sei lá mais o quê! Chama-se viver em sociedade e a interrupção voluntária da gravidez é uma questão social e não é acessória!
    Mas é óbvio que tens razão quando falas na contracepção e anti-contraceptivos, esses temas sim deviam ser falados e discutidos abertamente!

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